Resumo
O presente artigo analisa os contornos legais e jurisprudenciais da responsabilidade do sócio retirante pelas obrigações da sociedade, com enfoque no regime jurídico previsto no Código Civil e nas interpretações consolidadas pelos tribunais superiores. O estudo aborda a responsabilidade do ex-sócio, os reflexos dessa responsabilização nas esferas tributária e trabalhista, bem como a controvérsia relativa aos contratos de execução continuada ou por prazo indeterminado firmados durante sua participação societária. Com base na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o artigo destaca a importância da formalização adequada da retirada e do acompanhamento jurídico na estruturação de reorganizações societárias, como forma de mitigar riscos e garantir segurança jurídica.
Fundamento Legal e Natureza da Responsabilidade do Sócio Retirante
O ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Código Civil e da Constituição Federal, prevê que, nos casos autorizados por lei ou pelo contrato social, é facultado a qualquer sócio o direito de se retirar da sociedade por manifestação unilateral de vontade.
Tal prerrogativa decorre do princípio constitucional da liberdade de associação, que assegura não apenas o direito de constituir sociedades como também o de delas se desligar, vedando a imposição compulsória de vínculo associativo.
A jurisprudência reconhece, de forma consolidada, que o direito de retirada se configura como um direito potestativo, dispensando motivação, desde que observados os requisitos legais e contratuais pertinentes. Similarmente, os demais sócios podem deliberar pela exclusão de um membro, desde que satisfeitas as condições previstas em lei e no contrato social.
Em ambas as hipóteses, a retirada, ainda que regularmente formalizada, não implica exoneração automática das responsabilidades do sócio perante obrigações assumidas pela sociedade.
A legislação civil impõe um regime jurídico específico para a responsabilização do sócio retirante, cuja correta compreensão revela-se essencial à adequada gestão de riscos em operações societárias e à estruturação estratégica do momento e da forma de sua saída.
Nos termos do artigo 1.003, parágrafo único, do Código Civil, o sócio retirante responde subsidiariamente pelas obrigações sociais contraídas até a data de sua retirada, pelo prazo de dois anos contados da averbação da alteração contratual na Junta Comercial competente.
O referido artigo discrimina regras importantes para responsabilização do sócio retirante, quais sejam: (i) a subsidiariedade, ou seja, o sócio remanescente não responde de forma direta e imediata, demandando a prévia tentativa de satisfação do crédito ou obrigação junto à sociedade e aos sócios remanescentes; (ii) a temporariedade, que restou definida pelo legislador como os dois anos subsequentes a alteração societária; e, ainda, a (iii) limitação do fato gerador, cuja responsabilização se restringe às obrigações contraídas enquanto o sócio ainda integrava a sociedade, independentemente do momento em que estas se tornem exigíveis.
Responsabilidade em Matéria Tributária e Trabalhista
O regime de responsabilização apresenta nuances relevantes nas esferas tributária e trabalhista.
No âmbito tributário, conforme o artigo 135, III, do Código Tributário Nacional, o ex-sócio somente poderá ser responsabilizado pessoalmente por dívidas fiscais se restar comprovado que, na condição de gestor, atuou com excesso de poderes, infração à lei, contrato social ou estatutos.
Trata-se de hipótese de responsabilidade subjetiva, fundada em conduta culposa ou dolosa, não se aplicando, por analogia, o regime objetivo do Código Civil.
Já na esfera trabalhista, nos termos dos artigos 10-A da CLT, 1.003, parágrafo único, e 1.032 do Código Civil o sócio retirante responde, de forma subsidiária, pelas obrigações trabalhistas da sociedade, durante o período em que figurou como sócio, desde que ajuizada a demanda trabalhista no prazo de dois anos após a sua retirada do quadro societário. A solidariedade no caso do sócio retirante apenas será possível em caso de comprovada fraude na alteração societária, decorrente da modificação do contrato. Nos termos do artigo celetista citado, primeiramente deve responder a pessoa jurídica devedora, posteriormente, respondem os sócios atuais e, na sua falta, os sócios retirantes, sendo que sua responsabilidade se limitará ao período em que figurou como sócio.[i]
A jurisprudência trabalhista também exige a demonstração de vínculo objetivo entre o crédito postulado e o período de participação societária do ex-sócio, afastando, assim, qualquer presunção de responsabilidade automática.
Averbação Regular da Alteração Contratual: Efeitos Jurídicos
Não é incomum, na prática jurídica, que as alterações societárias sejam tratadas informalmente, sem o devido registro da alteração contratual na Junta Comercial competente.
Tal omissão acarreta consequências jurídicas sérias: enquanto não registrada a alteração contratual, a saída ou retirada do sócio não produz efeitos perante terceiros, conforme estabelece o artigo 1.150 do Código Civil.
O mencionado entendimento é o reiterado na jurisprudência pátria, a qual se fundamenta na ausência de publicidade da alteração da sociedade não pode produzir efeitos perante terceiros. Nessa linha o posicionamento atual do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE – REGISTRO DA ALTERAÇÃO DO CONTRATO SOCIAL PERANTE O REGISTRO CIVIL DE PESSOAS JURIDICAS – EFEITOS “EX NUNC” PERANTE TERCEIROS – Sentença que condenou o réu, sócio remanescente na sociedade simples (contabilidade), a proceder ao registro da alteração do contrato social, observando que os efeitos perante terceiros se produzem a partir do registro – Inconformismo do autor, que pleiteia que os efeitos retroajam à data de 21/06/2017, quando assinou a sua saída do quadro social – Não acolhimento – A alteração do contrato social, na qual o autor apelante AILTON se retirou do quadro social, vale entre as partes. Todavia, perante terceiros, os efeitos se produzem a partir do respectivo registro – O registro confere publicidade à alteração contratual e fixa limite temporal à responsabilidade do sócio retirante pelas obrigações sociais – Arts. 1.032, 1 .150 e 1.151 do Código Civil – Precedentes – RECURSO DESPROVIDO NESSE TÓPICO. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE – REGISTRO DA ALTERAÇÃO DO CONTRATO SOCIAL – Hipótese em que é cabível a expedição de ofícios ao Registro Civil de Pessoas Jurídicas e ao Conselho Regional de Contabilidade em São Paulo para que procedam ao arquivamento da alteração contratual da sociedade GESTÃO CONTÁBIL E CONSULTORES S/C LTDA. celebrada em 21/06/2017, na qual o ora autor AILTON PEREIRA DE SOUZA se retira da sociedade empresária – RECURSO PROVIDO NESSE TÓPICO, COM DETERMINAÇÃO.[ii]
Dessa forma, até que a saída seja registrada na Junta Comercial, o ex-sócio continua legalmente vinculado à sociedade, podendo ser responsabilizado por obrigações e dívidas assumidas após sua saída de fato, inclusive em prazo superior ao previsto legalmente. Isso porque já se encontra pacificado pela jurisprudência nacional que o início do prazo decadencial de dois anos só se verifica a partir do efetivo registro da alteração societária em seu contrato social.
Contratos de Execução Continuada ou por Prazo Indeterminado
Um dos temas mais controvertidos na jurisprudência nacional diz respeito à responsabilidade do sócio retirante por obrigações decorrentes de contratos de trato sucessivo, execução continuada ou com prazo indeterminado, celebrados enquanto ele ainda integrava o quadro societário.
Entende-se aqui as modalidades de contrato que se prolongam no tempo ou que se efetivem após o lapso temporal acertado ou necessário, como contratos trabalhistas, de fornecimento, locação, prestação de serviços, entre outros. Esses contratos, pela sua própria natureza, produzem efeitos ao longo do tempo, promovendo, por vezes, debate sobre inadimplementos posteriores à retirada do ex-sócio.
A particularidade desses vínculos negociais reside justamente no fato de que, embora sua celebração tenha ocorrido durante a vigência da participação societária, seus efeitos jurídicos e econômicos podem projetar-se no tempo, gerando obrigações futuras, cuja inadimplência venha a se consumar somente após a retirada formal do sócio.
A doutrina majoritária tem se inclinado para considerar que a obrigação nasce com a celebração do contrato, ainda que os efeitos econômicos se estendam no tempo.
Para Maria Helena Diniz “(…) o contrato, uma vez concluído livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico, constituindo uma verdadeira norma de direito, autorizando, portanto, o contratante a pedir a intervenção estatal para assegurar a execução da obrigação porventura não cumprida segundo a vontade que a constituiu”.[iii]
Nessa linha, tem-se reconhecido a responsabilidade do ex-sócio em, eventualmente, responder pelos débitos derivados desses contratos, desde que o vínculo obrigacional tenha sido constituído enquanto ele ainda integrava o quadro societário, mesmo que a constituição da mora, ou seja, o efetivo reconhecimento do inadimplemento, seja verificado após a sua saída, sempre respeitado o prazo legal de 2 anos.
O julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.495.433 RJ reconheceu a legitimidade da inclusão do ex-sócio no polo passivo da demanda, ao consignar que “a dívida cobrada é anterior a saída do agravante” apesar de seu título ter sido formado “através da sentença (…) dentro de 02 (dois) anos (…)”[iv] da retirada do sócio. A Corte destacou que a responsabilidade solidária do sócio, à época da contratação, legitimava sua inclusão com base na desconsideração da personalidade jurídica.
O que se observa é que em contratos de execução continuada ou por prazo indeterminado, a delimitação do fato gerador da obrigação e, por conseguinte, da responsabilidade do sócio retirante, nem sempre é evidente. Exige-se, portanto, uma análise acurada dos atos que ensejaram o inadimplemento e do papel desempenhado pela sociedade e seus sócios remanescentes na geração do passivo.
Ainda nesse panorama, merece destaque a orientação consolidada pelo STJ no sentido de que o prazo de dois anos a que alude o Código Civil refere-se à constituição do débito e não à inclusão do ex-sócio na demanda. Como se extrai do AgInt no AREsp 1.290.976/SP e do AgInt no AREsp 866.305/MA, ambos relatados pela Ministra Maria Isabel Gallotti, a Corte assentou que “é cabível a responsabilização de ex-sócio que se retirou da sociedade por obrigações configuradas até dois anos depois de averbada a modificação social, não sendo prazo limitativo do procedimento de desconsideração da personalidade jurídica, que proporciona a inclusão do ex-sócio em demanda executiva”[v].
Dessa forma, ainda que a inadimplência ocorra após a retirada, é juridicamente viável a responsabilização do ex-sócio, desde que demonstrado que o vínculo obrigacional foi constituído durante sua permanência na sociedade e que a dívida se formou dentro do lapso de dois anos contados da averbação de sua saída.
Considerações Finais
A retirada de um sócio do quadro societário, ainda que regularmente formalizada e registrada, não implica, por si só, sua imediata exoneração das obrigações anteriormente assumidas pela sociedade. O regime jurídico conferido ao sócio retirante pelo Código Civil impõe uma responsabilidade subsidiária e temporária, limitada ao período em que integrava a sociedade e condicionada a um prazo de dois anos contados da averbação da alteração contratual na Junta Comercial competente.
Além disso, em contratos de execução continuada ou celebrados por prazo indeterminado durante a vigência da participação societária, a jurisprudência tem reconhecido a possibilidade de responsabilização do ex-sócio, mesmo quando o inadimplemento ocorrer após sua retirada, desde que a obrigação tenha se originado enquanto ainda fazia parte do quadro societário.
Essa responsabilização também possui contornos próprios nas esferas tributária e trabalhista, exigindo do intérprete atenção à diferenciação entre os regimes legais aplicáveis, bem como à prova da conduta culposa ou dolosa do ex-sócio, quando exigida.
Assim, a retirada do sócio deve ser conduzida com cautela e planejamento, especialmente quanto ao momento da sua formalização e à adequada averbação do ato societário. A ausência de regularização registral acarreta riscos de extensão indevida da responsabilidade, inclusive para fatos supervenientes, reforçando a necessidade de acompanhamento jurídico especializado.
A correta compreensão dos limites e requisitos da responsabilidade do sócio retirante, tanto sob a ótica legal quanto jurisprudencial, é imprescindível para assegurar segurança jurídica à operação societária e proteção dos interesses dos envolvidos, prevenindo litígios futuros e garantindo o respeito aos princípios da boa-fé e da preservação da empresa.
[i] TRT-3 – AP: 00012516320135030010 MG 0001251-63.2013 .5.03.0010, Relator.: Adriana Goulart de Sena Orsini, Data de Julgamento: 15/12/2022, Primeira Turma, Data de Publicação: 16/01/2023.
[ii] TJ-SP – Apelação Cível: 1030689-69.2021.8.26 .0100 São Paulo, Relator.: Sérgio Shimura, Data de Julgamento: 08/04/2024, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 08/04/2024.
[iii] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 37.
[iv] STJ – AgInt no AREsp: 1495433 RJ 2019/0121466-2, Relator.: Ministro Luis Felipe Salomão, Data de Julgamento: 29/10/2019, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/11/2019
[v] STJ – AgInt no AREsp: 1290976 SP 2018/0109075-0, Relator.: Ministra Maria Isabel Gallotti, Data de Julgamento: 28/03/2019, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/04/2019.
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